domingo, 11 de maio de 2008

Mãe preta e Ama de leite - Não mais!!

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Irene no Inferno / Parte I
(Do livro: Desencanto de Sabiá!)
By: Nelson Maca (eu)

Ao Giovane, autor de A revolta da Tia Anastácia, poema que inspirou este conto (em diálogo cruel com Manuel Bandeira). Queiiiiiima!

Ai daqueles que esperam a recompensa do dia de amanhã sentadinhos na poltrona da esperança a aguardar o chamado do alto. Ai daqueles que oferecem o lombo às chicotadas do feitor e, em silêncio, e docilmente, não ousam rebelar-se contra o destino traçado por um alheio e perverso deus. Não que o que eu vá contar queira estilhaçar as tuas boas lembranças afetivas, meu preto, mas o que presenciei, aqui, não posso deixar de contar para você que faz parte deste pacto com a revolta que ainda me prende ao teu solo. Enfim, trago as últimas notícias do além. Não que eu tenha algum interesse em salvar a tua consciência ou colaborar para o progresso de tua alma emparedada. Que posso eu agora que faço parte da turma das almas penadas que tudo vêem mas que não podem nada? Sou como o revés daquele autor defunto branco que resolveu fazer memórias depois de morto, ou aquele neguinho de alma branca, bom cidadão que, depois de quase subir ao céu, mandaram-no, rapidinho, ao purgatório por uma questão de correção de estilo como diria um respeitável escritor universalista que agora corre lado a lado comigo.

O fato que vou contar se deu dias atrás. Dias no sentido do tempo e espaço em que me encontro. Você sabe.
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Irene, sempre preta, gorda e boa, chegou lá no céu, portando dentro do sutiã da santa inocência um papelzinho roto dobrado em muitas partes que julgava um atestado de boa conduta, uma espécie de carta de recomendação de seu patrão terreno. Palavras já um tanto difíceis de ler por estarem desgastadas pelo tempo em sua tinta da origem. Muito confiante, pediu logo notícias de onde ter diretamente com o porteiro da eternidade. Sabia de antemão que lhe era reservada uma vaga preferencial e definitiva naquela morada. Mas o porteiro-mor não se deu ao trabalho de, ao menos, ouvi-la no interfone das almas lavadas.

- Volte amanhã! Disse a bela jovem que a atendeu, rostinho angelical emoldurado pelo retângulo da tela do monitor.

Irene ficou meio sem saber para onde ir, tudo estranho para ela. Mesmo assim, achou que deveria aguardar, pois, a julgar pela imagem enquadrada da recepcionista, o céu devia estar cheio de almas brancas como sempre acreditara ser a sua. Finalmente chegara sua hora de freqüentar as festas galantes povoadas de gente bonita. E ali mesmo sentou-se ainda acostumada com a situação exemplar das longas noites de espera nas longas filas que sempre freqüentou nas idades do solo. “Nada como um dia após o outro” era seu lema nessas idas eras. Não há de ser nada, pensava agora, olhos fixos na fachada do albergue da paz com o azul celeste por detrás. E, além do mais, esta era sua espera derradeira. E descansou, olhos sempre abertos, agora mirando a frase feita com as mesmas sílabas que nunca aprendera a ler: “Sorria, você está sendo filmad@”!

- Se eu fosse você não teria esperanças, resolvi dizer de maneira calma.
. Irene preta, Irene gorda, apagou de vez o sorriso. Agora, deixando um pouco o ar de bonachona que sempre lhe acompanhou, olhou para mim meio incrédula. Pareceu pensar em dizer algo, moveu levemente os lábios grossos, mas desistiu, guardando seu silêncio de sempre para com os seus. E desfez-me de seu olhar como nos dias e noites telúricas. Sentou-se a um canto no chão da imensidão e, ali, sobre o tapete do firmamento, contrastando com o brilho das estrelas, aguardou mil anos terrestres até o amanhecer do eterno. Mas eis que, num iluminado momento, percebeu que aquela porta monumental esculpida por mil mãos de aleijadinhos do mundo abriu-se para a entrada de uma jovem de semblante doce e familiar que trazia uma boneca de pano nas mãos. Aquela moça da tela, ainda mais exuberante em alma de luz, apareceu in loco, trazendo consigo uma corte, com sorrisos estampados nos finos lábios e frases feitas de boas-vindas. O céu azul espelhava as cores dos olhares daqueles conterrâneos adoráveis. Uma senhora serena, na flor da boa idade do equilíbrio, acompanhada de um moleque e seu boneco de sabugo de milho, abraçaram fortemente a recém-chegada. De repente, fez-se um silêncio desconcertante, calando até mesmo o suíno fidalgo e o eqüino falante de asas do coro dos anjos. E o porteiro-mor surgiu majestoso, coberto de raios, abrindo os braços num compasso de espera. E todos entraram pelas portas abertas largamente sob o som dos flautins e o coro dos querubins e serafins.
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Ainda deslumbrada com a visão das portas abertas do paraíso, Irene resolveu bater novamente naquela casa de luz. Minutos depois, a bela moça, a cada aparência mais divinal, fez-se imagem como num sonho elegante na telinha novamente iluminada. E, antes que Irene pronunciasse uma só silaba de som, disse-lhe simplesmente:

- Vá agora, Irene. Deixe a terceira margem e procura teu lado do rio. Lá te aguardam os teus.

Dito isso, a imagem desfez-se diante de Irene, perplexa nos olhos e com a voz suspensa na garganta em posição de saltar para fora. Irene sentiu seu sempre bom humor dobrar-se em direção a si mesmo. Confusa, ensaiou uma batida na porta monumental, mas parou de repente, dedos dobrados, mão suspensa no meio do caminho, imóvel, no vácuo.


Mais uma vez, lhe dirigi a palavra:
- Vá, não insista, é nossa única via. Não habite mais travessias, onde sempre estivemos. Fomos para sermos a encruzilhada. O conflito que faltou às duvidosas sínteses ocidentais.

A preta não se deu ao trabalho de, ao menos, mirar-me, dando-me o silêncio de não me ouvir e a escuridão de não me ver. Altiva como nunca ousara diante dos amos, deixou-me na neutralidade quase infinda. E lá se foi, curvada com seus mil quilos de esperanças e crenças nos seus tantos senhores de todos os mundos escritos por eles em mil e uma noites.

(Continua...)

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"Eu era a criança que chora a mãe já depois da separação"

"Oh!, minha África ideal
Deixarei minha ilusão de retorno na superfície da palavra"

"É que agora meu canto não acalenta a infância de amo e senhor"

"E você não percebe que nosso peito de mãe preta está envenenado"


2008 - Ano da Gramática da Ira


2 comentários:

Luciana Matias disse...

Continua?como assim?(risos)

Eu quero ler tudoooooooo...

Axé!

Anônimo disse...

Sim, cara amiga Luciana Matias de MG, continua. É um conto quase novela. O bicho ainda vai pegar na eternidade cristã! Aguarde! rsrsrsrsrsrsrsrs
Nelson Maca - Exu Virtual!