sexta-feira, 26 de julho de 2013


ÁFRICAS – NOSSA REPATRIAÇÃO!  
:: Para Jorge Washington



Quando Áfricas, do Bando de Teatro Olodum, estreou há 6 anos, minhas filhas estavam com 6 e 8 anos. Não me esqueço desse dia, pois notei uma expressão comum nas duas: leveza e alegria. Assistimos agora a estreia da temporada que se encerra neste final de semana. Fomos com muitos amigos e saímos felizes. Por isso sugiro a você que vá assistir Áfricas, que leve não só as crianças, mas seus jovens e velhos, para que possam experimentar essa felicidade. Como bem diz a sabedoria da canção popular: o que existe na vida são momentos felizes.
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Esse espetáculo tem a capacidade de nos sequestrar. Sua vibração me lembra os mestres da observação cautelosa nos atentando para o fato de que a leitura que interessa estabelece tensão, condição essencial para transformação, para a renovação da compreensão da realidade. Saio de cada vivência de Áfricas reafricanizado. Essa fruição de elementos e signos positivos elevam nossa autoestima e recompõem a nossa Grande Família.
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A peça flui a partir da potência da oralidade, tendo como mote a experiência de crianças que, num mundo que lhes é hostil, encontram histórias que as redefinem positivamente. Dessa forma são reconectadas à tradição africana, que exercerá sobre elas um magnetismo efetivo, transferido ludicamente ao expectador. Sendo o presente da peça numa feira, esta nos desperta para nossa riqueza cultural concreta que precisa ser vivida e preservada. Da memória do ancestral africano aos conhecimentos do senhor das ervas, os personagens permitem uma dupla reflexão sobre nós mesmos: o desrecalque de nosso entorno, de suas demandas físicas e abstratas, e um recuo às tradições que nos devolvem um pertencimento original e nos relocalizam historicamente. Impossível não pensar no grande paradoxo da Negritude baiana e brasileira, repleta de agressões e estigmas, porém que guarda um tesouro simbólico inesgotável de objetos, narrativas e mitos. Vejo aí a grande potência de Áfricas: engendrar elementos primordiais para nossa significação profunda.
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No perverso universo de conceitos, valores, formas e tratamentos que são despejados cotidianamente sobre os corpos e vidas da comunidade negra e, mais pontualmente, de nossa infância e juventude, a experiência que nos proporciona essa realização do Bando de Teatro Olodum não me diz outra coisa senão que pertence às obras de arte que conquistam uma dignidade imprescindível à nossa emancipação. Trabalhos como esse são uma reserva ecológica de humanidade, amor próprio e autoestima. Apontam caminhos de superação do racismo cotidiano.
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Tudo no palco se faz múltiplo e diverso, descentramentos das lógicas que colonizam nosso corpo e nossa mente. Há um trânsito fértil entre a música, a dança, o canto e a representação em si, em consonância com a pesquisa atenta das especificidades negras. Com cenografia enxuta, o uso das combinações tradicionais de cores dá uma identidade fundamental à ambientação, e tem seu complemento no sofisticado figurino. O “tambor falante” de uma das crianças que conduz a peça costura as várias estórias encenadas. A música negra se faz extensão do corpo e gestos dos atores. Canto e dança se integram organicamente ao universo sonoro. As coreografias são estratégicas ao andamento. Fundamentais na manutenção da tensão, navega nesse atlântico negro o barco multicor dos contos encenados.
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Nas realizações da arte participativa, há sempre o risco da essencialização do ideológico em detrimento do estético. Esperta, Áfricas estende dois fios condutores: o pensar a condição do povo negro e a construção de um espetáculo que prenda e divirta. Nisso acertou: tensiona e relaxa sem perder o tom da linguagem que a justifica. Cutuca a vida concreta ao mesmo tempo em que dá fruição à fantasia. Apesar de seu sobretudo infanto-juvenil, seu traje é para todas as pessoas e idades.
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Áfricas fica em cartaz no Teatro Vila Velha até domingo, 27/07, com início às 16h. Dessa montagem, saí de novo pensando no que foi que me fisgou ali. Há poucos dias, minhas filhas, agora com 12 e 14, sugeriram assistirmos de novo. Áfricas, em toda nossa família, engendra desejos reiterados de revivê-la por dentro, porque nos representa. É apresenta mais uma via na construção de nossas subjetividades. Aproxima e coletiviza através de uma identidade partilhada! Nossa repatriação.
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* Nelson Maca
Articulador do Blackitude e Sarau Bem Black, professor da UCSal, poeta divergente e membro do Conselho Estadual de Cultura