terça-feira, 9 de junho de 2009

Não sorria, você vai entrar na Bahia Preta!!

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Meu luto é luta!

O exercício da voz sempre foi meu principal instrumento de materialização dos sentimentos e de luta pelas coisas que acredito. Embora na vida algumas coisas exijam silêncio, chegou o momento de falar.

Os que partilham o meu mundo sabem que os últimos três anos eu perdi três irmãos, um a cada ano, em contextos distintos, mas com os requintes da tragédia social que vitima milhares dos nossos todos os anos nesta cidade.

Que vergonha!

Realmente, sinto vergonha, como disse no enterro de Guto há um mês. Sinto vergonha, sim, de não saber como lutar contra isso. Sinto vergonha por ser acadêmica e não ter nenhuma teoria que ilumine a minha esperança. Sinto vergonha de ser militante orgânica e não enxergar nas estruturas políticas a reversão deste quadro. Sinto vergonha de ser professora e não visualizar na educação, apesar da equívoca responsabilidade que nos é imposta, a tão sonhada mudança. Sinto vergonha, sim!

Estou envergonhada da minha desesperança.

Perguntam-me sempre: “eles eram envolvidos?”. É interessante a pertinência social, apesar de historicamente vergonhosa desta pergunta, que parece tão natural e é tão absurda!

No bojo dela, está a legitimação dos crimes de exetermínio praticados contra os pretos desta cidade, sob a roupagem de um suposto envolvimento. Essa legitimação entrava os mecanismos de justiça e acentua a banalização dos crimes contra jovens negros da periferia, os quais ocorrem com a tolerância do Estado, por omissão ou participação efetiva.

Os familiares dos ditos envolvidos se escondem atrás de sua vergonha e se culpabilizam pala tragédia que lhes atinge, como se este fosse um problema individual, de uma família, e não a doença de uma sociedade.

Cada vez que vou à delegacia em busca de justiça, guardo cada palavra dita pelos agentes, na maioria das vezes, também pretos. Guardo-as, pois elas me escancaram o meu lugar histórico e social, melhor que qualquer teoria.
Essas palavras, corpo da injustiça que silencia o negrocídio, associada à dor que consome as minhas entranhas são a minha senda.

Não espere de mim a tristeza dos fracos ou fragilizados pelas violências cotidanas. Não ficarei macambúzia e cabisbaixa! Tenho muito a conquistar, inclusive pelos meus irmãos, pelos meus.

A dor nos olhinhos de minha mãe me reveste de uma coragem sem tamanho. Resisto também ao endurecimento, ao embrutecimento, que aprisiona a subjetividade e sensibilidade dos nossos nesta atmosfera de dor e desencanto. Parece que temos que nos desumanizar para suportar.

Não!

Continuarei sendo a mesma mulher que de tão fêmea e forte: sente, ama, chora, goza, sofre, ri... e a tudo transforma em poesia.

Meu nome é Ana Carla Portela e meu luto é luta!


(Ana Carla Portela)


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"Negrocídio"

Amigos de todo Brasil e mais outros lugares,

aqui, na Bahia, continuamos contando, em praça pública, as dezenas de corpos de nossos jovens pretos assassinados diariamente!

O lado que sambamos é o lado menos elegante do baile. Somos os ingredientes deste caldeirão de babárie que nosso Estado nos reserva. Engrossamos esse caldo escuro e grotesco que a tropicália esqueceu de cantar, que a axé music filtra e expurga diariamente com suas cantantes alvas e perfumadas....

A Ana Carla Portela é uma amiga muito querida minha.

Foi minha aluna no curso de letras na UCSal. É a ativista estudantil que mais apreciei e aprecio nesta minha sina também militante por dentro dos muros das estruturas... Uma menina ainda hoje, mas já, àquela época, portava aquela altivez que só a experiência de vida de um trajeto com causas nobres permite.

Aberta para as questões estudantis, políticas e culturais sem hierarquias de valor ou de ação, fez tudo o que tinha que fazer de coletivo na condição de secundaristas e graduanda. Depois partiu para outros vôos, sendo, agora, uma colega de profissão de quem me orgulho muito e sempre. Não por ser carinhosamente tratado por ela como mestre, mas, principalmente, por ter sido aceito, sem desconfiança, como seu Irmão mais velho.

Para você ter uma idéia da importância dela na minha trajetória, foi num encontro nacional de estudantes de letras (ENEL) que a Blackitude realizou sua primeira ação em Salvador. Ela nos convidou... apostou em nós! Foi nossa estréia efetiva, pois, antes disso, eramos mais blá-blá-blás de projetos futuros do que ações de presente.... e o que conta mesmo é bola na rede, não é?

Ela é a primeira madrinha da Blackitude....

Ler e pubicar esse depoimento para mim é doído demais! Mas não podemos empurrar a sujeira que depositam, dia-a-da, na porta de nosso templo e alma para "debaixo" do tapete que nos invisibiliza e silencia! É uma tragédia nossa demais! Familiar demais!! Partilhada!

Também aqui, na famosa Bahia de Todos os Mitos (de paz, harmonia, felicidade e cordialidade racial), vivemos permanentemente acuados em nosso estado de sítio. Somos, cotidianamente, abatidos como moscas que importunam a sopa do povo escolhido!

Só que não dá mais para calar, porque - como aponta a própria Irmã - nosso luto nos empurra para nossa luta!

Nelson Maca

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GOG: O Rap se Manifesta

Olá Ana Carla,
Só queria te dizer que também tenho muita vergonha.Vergonha de fazer parte, há 25 anos, de um movimento que tem feito muito pouco para mudar a realidade que você acabou de expor.

Pela lógica, seus entes deveriam ser fans do Hip Hop, e, principalmente, do Rap, que se auto-proclama "a voz da favela", mas que carece de ação e organização no seu habitat. Se o mundo está em crise, essa é a nossa. Carência de ações efetivas, transformadoras, renovadoras, que dialoguem e pensem o coletivo.

Meu argumento é duro, verdadeiro, desanimador, mas não vou pedir pra sair. Porque, ao mesmo tempo, tenho muito orgulho desse movimento. Orgulho, porque sei que, em meio ao joio, tem muito trigo. Gente que não se orienta apenas pelos lados artístico, financeiro e oportunista. Gente que chora e se indigna ao ler o seu desabafo. Gente que trabalha todo o dia, com a sensação de "nadar contra a correnteza", mas não desiste, nunca!

A rebelião é dever de casa e questão de sobrevivência, assim eles dizem.

Sabe Ana,
Talvez o Hip Hop seja bem menor do que eu imaginava e eu tenha sonhado grande. Vejo um campo de ação imenso, repleto de terras devolutas, não habitadas. O gigante tem muitas veias, mas falta sangue vivo para encharcá-las. Temos que fazer nossa reforma agrária, já! Aí, não sentirei mais vergonha, apenas indignação.

Um beijão no coração é o meu conforto a você e a sua amada mãe.

GOG!
Ação, senão revolução acaba em moda.


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8 comentários:

Anônimo disse...

Olá Ana Carla,


Só queria te dizer que também tenho muita vergonha.
Vergonha de fazer parte, há 25 anos, de um movimento que tem feito muito pouco
para mudar a realidade que você acabou de expor.
Pela lógica, seus entes deveriam ser fans do Hip Hop, e, principalmente do Rap
que se auto-proclama "a voz da favela", mas que carece de ação e organização no seu habitat.
Se o mundo está em crise, essa é a nossa.
Carência de ações efetivas, transformadoras, renovadoras, que dialoguem
e pensem o coletivo.

Meu argumento é duro, verdadeiro, desanimador, mas não vou pedir pra sair.
Porque ao mesmo tempo tenho muito orgulho desse movimento.
Orgulho, porque sei, que em meio ao joio, tem muito trigo.
Gente que não se orienta apenas pelos lados artístico,financeiro e oportunista.
Gente que chora e se indigna ao ler o seu desabafo.
Gente que trabalha todo o dia, com a sensação de "nadar contra a correnteza",
mas não desiste, nunca!
A rebelião é dever de casa e questão de sobrevivência, assim eles dizem.
Sabe Ana,
Talvez o Hip Hop seja bem menor do que eu imaginava e eu tenha sonhado grande.
Vejo um campo de ação imenso, repleto de terras devolutas, não habitadas.
O gigante tem muitas veias, mas falta sangue vivo para encharcá-las.
Temos que fazer nossa reforma agrária, já!
Aí, não sentirei mais vergonha, apenas indignação.

Um beijão no coração é o meu conforto a você e a sua amada mãe.


GOG!
Ação, senão revolução acaba em moda.

Luciana Matias disse...

Ana Carla,


Sou mulher preta, mãe de dois filhos pretos, ainda crianças.
Sou professora preta de uma escola pública, em uma periferia da cidade de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte, Minas GERAIS, na sua maioria, meninas e meninos pretos, são os meus alunos.
Sou militante preta, e muitas vezes, sinto-me impotente perante á pervecidade humana. Impotente pela modernização da teoria do embraquecimento. Morte aos jovens Negros! Sim, é esta a filosofia desta teoria maldita.
Impotente porque as mãos que deveriam proteger os cidadãos, negros e não negros, crianças, joves e adultos, muitas vezes, são quem apertam o gatilho...
Um dia, Steve Biko,disse:
" Não agonize, se organize!"
È isso que temos que fazer, Ana Carla, nos organizar, você não está só. E proponho ao meu irmão Maka e todos, que fazem parte desta Confederação Nagô, que organizamos um manifesto " CANTO CONTRA O NEGROCÍDIO JUVENIL"(parafrasiando meu irmão Maka).
È preciso cantar aos 4 cantos do mundo que a teoria do embraquecimento, se modernizou e a cada dia que passa está mais veloz. E está em todo o Brasil.
" Não chora nego nagô, canta!"
Vamos nos organizar, Confederação Nagô. Nossos meninos pretos precisam estar vivos, permanecer vivos, para continuarem nossa história, para escreverem a história deles de forma diferente, não agonizando, se organizando. Não chorando, cantando...
"NÃO CHORE NEGRO NAGÔ, CANTA!"
"NÃO CHORA NEGRA NAGÔ, CANTA!"
CANTA NEGRO NAGÔ!
CANTA NEGRA NAGÔ!
AXÉ,
LUCIANA MATIAS, CONVOCANDO A CONFEDERAÇÃO NAGÔ CONTRA O NEGROCÍDIO JUVENIL.

Unknown disse...

Meu comentário é minha ira, meu manifesto, minha palavra é grande e forte. Fiz um texto inspirado no que tu escreveu, no que Maca escreveu e no que Gog complementou... Leia http://cronicamendes.blogspot.com/2009/06/odeio-heroina-e-herois.html

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
... disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
... disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
... disse...

Pessoas,

A minha irmã, companheira de luta e colega de profissão escreveu um
texto acerca da morte do seu irmão e escrevi um também. Aproveito para
espalhar aos quatro cantos as nossas palavras de dor. Diante das
circuntâncias e do belíssimo e coerente texto escrito pela minha amiga
deposito minhas palavras no texto que segue. O de Carlota está abaixo
do meu e escrevi porque EU TAMBÉM PRECISAVA FALAR!

Resposta ao texto “Meu luto é luta!”*

Nossos referenciais são fruto das nossas relações. Estas tecidas pelos
laços familiares, convivências do mundo do trabalho, divergências
culturais e também pelo estranhamento. Na contemporaneidade, creio ser
o estranhamento responsável por boa parte das relações que vêem sendo
estruturadas entre as pessoas. Concebo como estranhamento aquilo que
não me equivale como referência para a construção de quem sou e é
neste paradigma que me encontro com mais esta fatídica situação de
morte que hoje, agora mesmo vivencio. Mais uma vez, a família de uma
das minhas melhores amigas, Carla Portela, vivencia a triste
circunstância de perder um ente querido numa situação que assola o
Brasil afora, onde matar é a prioridade referencial para que as
relações sejam tecidas.

É nesta perversa perspectiva que o Estado é e tem sido responsável
pelo povo que atravessou o Atlântico para construir este país. Povo
que tem cor, que bem sabemos onde “quase” mora, que ocupa desde sempre
os mesmos espaços de não-poder, que é vítima de uma barbárie racial
sem tamanho e que lhe tem negligenciadas as condições de uma vida
digna desde sempre. O capitão-do-mato foi substituído pela polícia,
representação do Estado para empreender a ordem. Que ordem? Para quem
é preciso ordenar? Daí, muito mais se investe em segurança pública do
que em educação, mais se investe em munições para armas de fogo do que
em livros para as escolas públicas e ainda assim, a política de
segurança pública logra o sucesso com as baixas cada vez mais
freqüentes e reais da negritude marginalizada. Penso que a munição que
merece o investimento do Estado é aquela que dê vida, reproduza amor,
frutifique alegrias e não este embate sanguinolento que nos torna alvo
por nada, por justamente sermos concebidos e tratados como tal. Nada!

... disse...

É contundente a realidade que vitima a maioria dos pretos e pretas
neste país e está posta até para quem não queira enxergar. A
impetração da morte como solução para todos os problemas da humanidade
(branca, é claro) é o que me assusta em perceber que a qualquer
momento não terei mais os meus nesta existência terrestre. Para mim, é
neste comportamento fascista, não digo somente racista, tenho a
ousadia de dizer que racismo é muito pouco, que visualizo uma busca
incessante em enquadrar a humanidade na hegemonia ariana custe o que
custar. Há uma indecente tentativa de não fazer com que isto seja
“exergável” a olho nu (precisaríamos de um microscópio de que tamanho
mesmo?). Penso estar às vezes sendo a única a enxergar algumas coisas
em alguns espaços. Daí, como sempre, recorro à minha amiga Carla
Portela em desespero para perguntar a ela: “É isso mesmo ou eu estou
louca?” ou “As outras pessoas não estão enxergando?”. Carlota, a sua
vergonha também é minha. Nas nossas conversas, percebo que nos
amparamos nestas nossas “vergonhas” para lutar, já que como você mesmo
diz: “Amiga, não é qualquer espaço que nos cabe! Se está errado
falamos e pronto e daquele jeito...” (risos discretos).

Muitos laços como os de Guto, Caio e Clebinho são destruídos a cada
segundo nesta cidade e o que fazer? Obviamente não temos as respostas,
mas a fixação eterna de que se aqui viemos, se aqui estamos, algo
faremos, ah se faremos! A sua desesperança que também é minha é
força-motriz para empreender a minha vida em prol do que acreditamos
e, certamente, não é nisto que estamos vivendo, em que apostamos as
nossas fichas de credibilidade que isto lá é mundo para se viver e que
deste jeito ele deva continuar. “A vida sempre continua, entretanto
estes infortúnios caminharão sempre com ela. De certa forma, buscamos
acreditar que esta realidade nada profícua será efêmera, afinal, caso
não mais tenhamos a possibilidade de sonhar que um outro mundo é
possível, não entenderemos que razão ainda há para sequer existirmos.”
Trecho do texto escrito como mais um desabafo e que foi distribuído no
enterro de Guto.

Devemos concordar com Clarice Lispector "É uma infâmia nascer para
morrer não se sabe quando nem onde." A luta continua e eu sempre
estarei com você e todos os outros que nela acreditam. Ainda bem que
não estamos sozinhas... Ainda bem que a coisa está ficando cada vez
mais preta!

Militante da vida,

Dayse Sacramento

*Iniciei o texto exatamente no dia da morte de Guto, mas só hoje
consegui “terminar de continuar”...