Às vésperas do lançamento do Amar é Crime em Salvador (Edith), o escritor pernambucano Marcelino Freire nos cedeu uma entrevista ímpar. Com a mesma desenvoltura, sinceridade e elegância que marca seus contos, ele fala do entrecruzamento de sua vida e obra, com destaque para a inspiração em sua mãe em tudo que faz. Entusiasmado com a cena literária que toma as periferias brasileiras, Marcelino fala da importância do “desencastelamento” da literatura, para sua volta ao mundo cotidiano com tudo que ela necessita para se revigorar: alegria, ódio, paixão... Fala com humor do Prêmio Jabuti que ganhou em 2006 (por Contos Negreiros - Record) e defende seriamente a independência do texto e a liberdade sócio-política do autor. Enfim declara seu amor pela Bahia e comenta sua participação nos eventos de lançamento de seu novo livro em Salvador juntamente com o coletivo Blackitude: Vozes Negras da Bahia. Ele participa do Sarau Bem Black (quarta, 27, no Sankofa African Bar - Pelourinho) e realiza oficina de contos na cidade (terça, 26, no Anexo do Theatro XVIII). O livro será vendido pelo preço promocional de R$15.
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Nelson Maca - Você afirma que sua mãe sempre foi, é e será a força motriz de sua inspiração. Quem é historicamente essa mulher e como exatamente aparece na “alma” e na “textura” de sua literatura?
Marcelino Freire - Uma mulher que saiu com nove filhos do sertão de Pernambuco. Uma retirante, que não cansava de falar, de implorar que a gente estudasse, para ser “gente” na vida. Uma guerreira, uma teimosa. De uma generosidade sem igual. De uma honestidade sem igual. Meus personagens têm a verdade dela, a fúria dela, a alegria, a teimosia. A alma de meus personagens fala pelos cotovelos. Minha mãe é a voz dos meus personagens. Essa ladainha...
Maca - O Mano Brown do grupo de rap Racionais MC’s disse: “Você pode sair da favela, mas a favela não sai de você”. Eu te pergunto: você afirmaria o equivalente sobre Sertânia, Recife ou sobre o Nordeste em geral com relação à sua pessoa e sua produção literária?
Marcelino - Eu não sabia que eu tinha o Recife comigo, que eu carregava Sertânia, minha terra natal, no meu juízo. Só soube disto quando vim viver em São Paulo. Estou em São Paulo há vinte anos. São Paulo me deu sotaque, infância, memória. Aqui, senti saudades. Aqui, descobri as minhas origens. Agarrei-me à minha terra, para não ser atropelado pela velocidade de São Paulo. Meu sangue ganhou cor no cinza paulistano, sabe?
Maca - Quando comecei a leitura dos primeiros textos de Contos Negreiros deu-me a impressão de uma voz bastante familiar àquele mundo representado ali. Depois soube mais sobre você, vi sua imagem, etc, e constatei sua condição racial. Para nós, do movimento negro, é conflitante brancos tentarem forjar uma identidade negra. Não vejo isso em você, mas acredito que você deva ter enfrentado – de dentro e de fora - esse dilema com seu livro mais famoso. Você pode falar um pouco de como tem sido isso pra você?
Marcelino - Vários leitores acharam que eu era negro. Aliás, meu livro, aí na Bahia, foi parar em uma biblioteca quilombola, que só coloca nas estantes autores negros. É uma vitória da literatura, não é? Essa de a palavra não ter cor, raça. A palavra que vence pela musicalidade, que ganha pela humanidade que ela carrega. Eu sinto na pele o tempo em que vivemos, não importa a cor da minha pele. Estamos juntos e irmanados na mesma dor. “Contos Negreiros” foi escrito por um escritor. E escritor não tem sexo, não tem forma, não tem cara. Escritor é alma, a visão de mundo que ele tem...
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Maca - Inegavelmente, seus contos são polêmicos. E dentro dessa perspectiva, o homossexualismo, cru como aparece, com certeza, incomoda muitos. Como você encara essa temática? Você se considera um escritor engajado socialmente?
Marcelino - Fujo disto, deste “engajamento”, digamos, no seu sentido panfletário. Repito: eu escrevo porque dói, porque quero me vingar de algo. Descarregar um peso, inaugurar um olhar, uma revolta. Essa verdade com que escrevo é a mesma verdade com que o leitor lê. Sem disfarces, sem delongas. A vida como ela é. Meus temas são arriscados, fronteiriços. Para meu conto cair em um discurso, em uma demagogia, é um passo. Corro esse risco, sempre. Mas prefiro que seja assim a fazer uma literatura frígida, que não fede nem cheira.
Maca - Em termos de produção publicada, como você sintetizaria sua carreira até o momento? Você pode fazer pra gente um panorama de sua obra até aqui. O que você acha que deve ficar, o que foi precipitado? Como anda sua cesta de lixo?
Marcelino - Rapaz, acabei de lançar o livro de contos “Amar É Crime” e já quero jogar boa parte dele no lixo [risos]. O tempo inteiro a gente vive esse dilema. Eu publico para me livrar do livro. Porque carregamos essas incertezas com a gente. Porque o escritor não trabalha com resultados. Não tem uma ideia fechada sobre o seu trabalho. Isso não quer dizer que eu não trabalhe, à exaustão, um conto. Fico um tempão escrevendo e reescrevendo... Mas quem dará a palavra final é o leitor. Nesse sentido, minha sorte foi lançada. Se ficarei, não ficarei, isso não depende mais de mim. Sei que fiz o “melhor” que pude. Perdão se foi “pouco”, ou será “pouco” o que fiz...
Maca - Fale um pouco de sua experiência como agitador cultural. Seu evento mais conhecido é a Balada Literária, não é? Do que se trata, exatamente, essa balada? O que mais você tem feito nesse sentido? O que já fez? O que ainda deseja realizar?
Marcelino - Eu costumo dizer que em vez de “agitador”, eu sou um “agitado” cultural. Inquieto, sempre. Gosto de me lembrar de que sou um escritor contemporâneo e muito tem de ser feito pela literatura em nosso país. País em que se lê muito pouco. Detesto escritor parado, na redoma, acendendo incenso e se sentindo um Deus... Tô fora. Por isso provoco eventos, circulo ideias. A Balada Literária existe desde 2006 e acontece anualmente no bairro da Vila Madalena [a sexta edição, em homenagem ao poeta Augusto de Campos, acontecerá de 16 a 20 de novembro]. Ela reúne uma centena de artistas brasileiros e de outros países. Em bate-papos descontraídos, rodas de samba, festas, lançamentos... Sempre de forma descontraída, como tem de ser, assim, celebrada a literatura.
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Maca - Depois de se consagrar numa editora literalmente de ponta, inclusive com um dos prêmios mais cobiçados pelos que ganham prêmios, você aparece agora com um livro publicado pela Edith, uma editora independente e centrada numa proposta de coletividade. Por que esse retorno ao mundo da construção? Fale um pouco da Edith e de sua importância na sua vida literária, política e afetiva atual?
Marcelino - Eu estou muito contente com essa volta ao batente, digamos, mais “independente”. Precisava disto. Não briguei com a Editora Record, onde lancei dois livros. Apenas quis que o meu novo volume de contos saísse por esse Coletivo que ajudei a criar. Edith não é uma editora, é uma pessoa. Não é uma empresa, é um “exemplo”. Digo assim: que as pessoas se juntem para se auto fomentar, para criar seus coletivos artísticos... Na Edith, temos ótimos escritores, que lançaram agora seus primeiros trabalhos. Gente que está colocando a bunda na janela. Eu os provoquei, mas eles me provocam também. Eu precisava dessa energia, para não me sentir um “autor patê de fígado”. Se a gente não tomar cuidado, o pseudo “status quo” nos transforma em vinho branco. Eu quis zerar tudo, recomeçar. E, graças à parceria com o grande editor que é o Vanderley Mendonça, a gente pôde realizar essa empreitada – com profissionalismo, seriedade. Todos os livros da Edith já estão em formato e-book, na Amazon. Enfim... Para saber mais, visite: visiteedith.com
Maca - Amar é crime, por exemplo, é um dos títulos que inauguram a Edith, não é? Como você definiria esse novo livro que acaba de lançar? Em que ele se alinha, amplia ou diverge de seus livros anteriores?
Marcelino - Esse meu livro de contos naturalmente sairia pela Editora Record. Como lhe disse, resolvi trazê-lo para dentro do Coletivo. Minha voz, minha maneira de narrar está presente nele. Aqueles meus cacoetes sonoros... É um estilo que eu não tenho como largar. Nem quero largar. Mas sinto que este meu livro é o mais apaixonado e corajoso em relação aos outros. Pela postura que tomei. E por alguns contos lá, reunidos. Aliás, uns contos até mais longos, com um fôlego mais existencialista... Estou experimentando, sempre. Embora, às vezes, não pareça. Cada livro meu tem uma atitude, uma cara diferente, um jeito de chegar ao mundo...
Maca - Por que “Amar é crime”?
Marcelino - Porque percebi que os contos do livro falavam de começo de amor, final de amor. Porque o amor mata mais que o ódio. Porque eu queria gritar alguma coisa: meu coração estava morto. No ano passado, perdi a minha mãe. E fiquei vazio. E parece que o amor acabou. Que a morte dela me matou. O livro é dedicado para ela, “para o amor da minha vida, in memoriam”. Mas todos os amores parecem estar “in memoriam”. Enfim... Posso dizer que é o meu livro mais passional, o meu livro mais cego, mais irresponsável. Por tudo isto, meu livro mais verdadeiro.
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Maca - Dia 27 você lança o livro em Salvador num Sarau literário afinado com as demandas de uma produção literária oriunda de bairros periféricos e de escritores jovens, na sua maioria, vindos de uma experiência de exclusão social. Principalmente pelo racismo baiano. Não por acaso, em São Paulo, aconteceu o mesmo com o lançamento de “Amar é crime” na periferia do mundo literário e editorial paulistano. Aliás, você circula com desenvoltura nessas cenas todas. Qual sua visão sobre os saraus literários divergentes hoje? Qual a importância deles para a cultura brasileira? Como você vê o resultado dos textos desse complexo?
Marcelino - Pois é: quando eu fiz 20 anos de São Paulo, no dia 13 de julho passado, eu quis comemorar no Sarau da Cooperifa, que acontece há 11 anos na Vila Piraporinha, na periferia de São Paulo. Porque lá, sempre que vou, eu me energizo. Porque se existe algo de novo e pulsante que está acontecendo na literatura brasileira, este algo está rolando nesses saraus, nessa guerrilha, nessa postura. Eu adoro os artistas que conheci nesses saraus... Sem frescuras, autênticos, que estão escrevendo no grito. Eu escrevo no grito. Estamos juntos nesta... Estou louco para conhecer o Sarau Bem Black. Sei que sairei de lá renovado, irmanado... A contar pelo que ouvi do Nelson Maca, pelo que o vi recitar, sei que já faço parte dessa fala, dessa poesia bendita, raivosamente lírica. Adoro isto e sarava!
Maca - Como é a sua relação histórica com a Bahia? Você já esteve aqui mais de uma vez, realizando performance lítero-musical; já levou escritores da terra para sua Balada literária; já se encontrou com estudantes soteropolitanos. Fale um pouco da Bahia – passado, presente e futuro - na sua história?
Marcelino - Tenho muitos amigos na Bahia. Desde sempre, quis conhecer Salvador. Lembro da magia que foi pisar pela primeira vez na Bahia – na época, eu devia ter uns 20 anos... O sotaque, a garra, o povo lindo e alegre. Já me apresentei no Pelourinho com o cantor baiano Aloísio Menezes. Grande voz desta terra! Meu texto conversa com o canto negro do Aloísio. Outro querido amigo é o Padre Alfredo. Ex-padre, que me mostrou uma outra Salvador. E tem ainda os meninos do Coletivo Muito Barulho por Nada, que eu trouxe, uma vez, para a Balada Literária. Nossa! Falar da Bahia é, de alguma forma, falar de Pernambuco. Porque a gente se junta numa mesma geografia pulsante, teimosa, colorida... Sempre a Bahia coloca minha emoção em dia. Estou voltando para me abastecer dessa força.
Maca - Antes do lançamento de “Amar é crime”, no dia 26, você ministra uma oficina de conto em Salvador. Você pode nos fazer uma síntese de como estará estruturado esse curso? Qual sua expectativa com relação a esse encontro?
Marcelino - É a segunda vez em que coordeno uma oficina em Salvador. Vai ser uma coisa curta, uma conversa apaixonada sobre literatura. Vou tentar desbloquear ideias, soltar o verbo. Falar de poesia, de vocabulário, despertar parágrafos. Juro que será uma experiência única... Quem me dará o tom serão os participantes, cada um que estiver ali, na sala, com a sua história, o seu verso, o seu romance, a sua narrativa... Vamos comungar juntos, soltar os cachorros do peito juntos.
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Maca - Aliás, você já vem fazendo oficinas de conto há algum tempo. Que resultados concretos você tem colhido? Já formou algum contista que você considere com envergadura para a função?
Marcelino - Eu tenho feito amigos, sobretudo. Aliados de ofício. Outro dia, estava no Recife com o escritor Jorge Antonio Ribeiro. Ele tem 61 anos e acaba de lançar um excelente livro de contos, a sua estreia na ficção, o “Esses Dias Pedem Silêncio”. Ele fez oficina comigo. Mas estávamos no Recife bebendo juntos, como parceiros de guerra. Detesto que me chamem de “professor”. Eu não chamo ninguém de “aluno”. Eu quero todo mundo na mesma trincheira. A criação da Edith foi por isso: para aumentar o “contingente” artístico... Vá lá na página da Edith [visiteedith.com], descubra cada uma dessas forças... Todos autores talentos e vigorosos.
Maca - Você tem frequentado cenas, eventos e ações literárias as mais diversas possíveis. Que eventos e práticas literárias mais te atraem hoje? O que você aconselharia aos “novos” escritores?
Marcelino - Repito: a cena mais vigorosa da literatura brasileira atual está nos diversos saraus pela periferia de São Paulo. Sempre que posso, estou lá. O conselho que dou aos novos escritores? Ponham a bunda na janela, sem pudor. Juntem-se, se agrupem, teimem muito. Não virem um poço de rancor. Soltem o texto, divirtam-se. O resto vem, o resto sai na purpurina...
Maca - Uma pergunta que não quer calar: o que significa, concreta e simbolicamente, um “Jabuti” em sua vida?
Marcelino - Apenas um prêmio que me deram. Eu não fui pedir Jabuti para ninguém. Agora eu não posso me sentir um Jabuti. Tem gente que ganha um prêmio desses e se sente o dono do pedaço. Isso comigo não rola. O melhor prêmio que recebo é o olhar do leitor, sentir que alguém compactuou com o que eu escrevo. Aliás, você sabe que muita gente confunde meu livro “Contos Negreiros” com “Navio Negreiro”, de Castro Alves. Na época, acho que foi um grande engano: eles queriam era, na verdade, premiar Castro Alves e não a mim [risos].
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Maca - Marcelino, muito obrigado pela entrevista e até breve. Fica aí o espaço para suas considerações finais... ou não... rsrs
Marcelino - Considerações finais: eu sou filho de Xangô. Justiça, sempre. E muita paz. Salve, salve. Abração no coração de todos e té já.
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Para mais informações sobre Marcelino Freire:
Blog: www.marcelinofreire.wordpress.com
Twitter: @marcelinofreire
Edith (editora): www.visviteedith.com
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*Obs.
Esta entrevista está sendo publicada simultaneamente no recém inaugurado site http://www.bahianarede.com/ (outrora Blog), que é conduzido pelos excelentes e compromissados jornalistas Marcus Gusmão e Josias Pires, pessoas que aprendi a admirar - em campo de batalha - por lutarem por - e praticarem - uma comunicação social mais ampla e plural.
Tive a honra do convite para integrar a equipe de colaboradores do novo site. Estava pensando na proposta, quando li, no ainda blog, a matéria do Josias que repercute a manifestação crítica objetiva da "Campanha Reja ou Será Morta Reaja ou Será Morto" publicada originalmente no Blog:
www.QuilomboX.blogspot.com
Isso, mais a amizade e cumplicidade que Marcus tem dedicado a mim, à minha literatura e ao Coletivo Blackitude: Vozes Negras da Bahia, foi determinante para minha paticipação no projeto.
Fico muito feliz de começar com uma entrevista com outro cara que encontrei na trincheira bélica-cultural desse Brasilsão a nós tão perverso: meu amigo Marcelino Freire (mesmo que ele não me considere isso tudo! rsrsrs).
Nelson Maca
Poeta Exu Encruzilhador de Caminhos!
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2 comentários:
Cara, obrigado pelas palavras bacanas. Vamos somar esta artilharia. Abraço fraterno.
SUMEMOMARCUSGUSMÃO!
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