domingo, 27 de dezembro de 2009

Algumas reflexões acerca dos anos que virão!

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Tô aqui, viu!?



Minha vida concreta não tem dado grandes espaços às minhas virtualidades! Mas tô aqui, tá ligado? Um olho no passo, o outro na pausa; e os dois pés no chão da Bahia Preta, minha mãe gentil! Tô tentando refletir um pouco sobre os caminhos que tenho percorrido com meu parceiros "artivistas".

A cultura-espetáculo tem me cansado um pouco quando essencializada.

Em novembro último estive em Brasília. Eu e meu amigo GOG participamos de uma mesa redonda, debatendo "políticas culturais". Tive o prazer de conhecer uma menina muito massa: Jaqueline, chamada pelos seus de Jaque. Ela é da Griô Produções e foi a "culpada" direta pela minha ida à capital federal. Na apresentação que fiz por lá, procurei pensar a cultura de uma maneira mais política.

Parte das reflexões que fiz lá resolvi publicar aqui. Como disse, a cultura-espetáculo tem me stressado um pouco: é muito artista, muita arte e pouca rebeldia, pouca transformação!

Quero dedicar o texto abaixo a Jaqueline da Griô e a todos que não separam a arte do ativismo nem o ativismo da arte, mesmo que isso lhes impessa o sucesso midiático e interdite o ouro de tolo!


Negritude e Cultura do Espetáculo

(Nelson Maca – Novembro, 2009)


Estarmos, ainda hoje, falando em cultura negra e afins significa, antes de tudo, que, mesmo com quinhentos anos de colonização, escravismo, neo-colonização e neo-escravismo, eles não conseguem nos isolar.

Somos um povo forte, difícil de matar, como diz o Irmão KL Jay do Racionais MCs.

Ou então, como diz o meu Irmão GOG, “quanto mais de nós matam, mas nossa raça procria. E todo esse mal a gente assimila, transforma em poesia”.

O meu texto reveste as reflexões de um maloqueiro problemático que nasceu para ser dissidente, que cresceu para desafinar o coro dos contentes, e que vive não na margem, mas no centro do problema sócio-racial brasileiro. E é localizado neste contexto que vocês devem considerar tudo que escreverei aqui.

Não vim para agradar, pois, Exu que sou, vim dinamizar o conflito, não acomodá-lo.

Então, espero que todos entendam logo que o fato de trazer alguns problemas não quer dizer que eu tenha as respectivas soluções. Ser um problema já dá trabalho demais para mim. Mas sei que esse é o meu papel.

O meu Mestre Carlos Moore já me explicou qual é o meu lugar e o meu papel: o papel do artista e do intelectual é ser o guardião de sua comunidade. Enquanto outros vivem o cotidiano, nós sondamos, incessantemente, nossas contradições, para desmascará-las e chamarmos os irmãos ao seu combate.

O nosso lugar é o da liberdade. Isso determina tanto nossa reunião, voluntária ou não, quanto nossa dispersão, involuntária ou não.

Com isso, já adianto minha primeira “questão”: nenhum governo nem ninguém tem o direito de limitar o artista nem o pensador, transformando seus corpos e biografias em aparelhos de estado, ou sua produção estética e simbólica em pretexto para veiculação de ideologias oficiais.
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Aqui entramos, literalmente, na traiçoeira e escorregadia discussão das “políticas culturais”.

Quando se trata de política para a cultura, o que tenho assistido, desde minha iniciação orgânica em trabalhos e produções culturais, é uma sistemática confusão entre cultura - livre e sem adjetivos - e ações e ideologias governamentais.

A cultura do estado muda conforme muda a política partidária da vez. Do apadrinhamento da indicação à proliferação dos editais públicos, muitos são os mecanismos de dissimulação do mesmo, ou seja, uma política cultural que atende apenas às demandas de segmentos específicos da população, com o respectivo apagamento das oposições várias que contradizem os modelos convencionais.

Cultura em liberdade supõe uma comunidade livre e pensante de si mesma. Um regime democrático só o é quando potencializa as diversidades dos grupos sociais que o compõem. Mas o que temos percebido, presenciado e projetado historicamente é o contrário: o apagamento das divergências!

Sempre que discutimos abertamente Políticas Culturais, invariavelmente, discutimos a Arte e seu Financiamento. Pouca gente que faz Arte - que eu conheça - se interessa em ampliar o debate para além desse redutor binômio material.

Sempre é a mesma questão: para onde devemos encaminhar os incentivos e recursos gerados ou intermediados pelo poder público?

E a coisa se torna tão calorosa que, invariavelmente, também no círculo dos gestores, mistura-se o público e o privado, gerando, inclusive, algumas polêmicas - logo abafadas! Muitas vezes projetos comerciais, economicamente viáveis e historicamente auto-sustentáveis, recorrem e são acolhidos nos programas governamentais.

Logicamente, o que mais se observa é o público potencializando o privado; nunca o inverso.

Chego, então, a minha segunda “questão”: a cultura é comumente compreendida e confundida com o espetáculo - inclusive quando parâmetro para avaliações institucionais.

O estado passa a ser o grande mecenas de artistas nacionais. Acho que seria redundante discutir aqui quem são esses artistas, o que faz com que eles mereçam tal mecenato e que contribuição sua arte dá para a formação de comunidade cidadã. Sabemos que esta arte agraciada tem idade, sexo, classe social, cor e raça, seguindo, estritamente, os paradigmas históricos em construção alinhada e sem ruptura ideológica e étnica desde o “achamento” do Brasil.

As ações culturais que fogem a essas determinações, se encaixam nas “demandas especiais” (dia disso... semana daquilo... mês daquilo outro...). Nunca são compreendidas como cotidianas e contínuas, ou seja, culturalmente dinâmicas.

Decorre que, enquanto espetáculo, a cultura é compreendida como obra de arte ou evento, sendo ajuizada e avaliada pelo seu produto final e pelo sucesso de sua inserção no mercado. A arte que não gera recurso direto ou que não se espande no seio de comunidade pode igualmente ser bem avalidada desde que represente o supra-sumo da cultura (oficial), com seu valor simbólico localizado. Admite-se também a arte chamada, de fora pra dentro, de popular ou então os produtos da “indústria cultural”.

Mesmo admitindo essa lógica, o problema é: como ficam os comportamentos e expressões que não se pautam ou não atingem o status de alta cultura, produto de indústria cultural, folclore “positivo” ou “contribuição” à cultura nacional?

Eu tenho encontrado este problema em minhas produções culturais quando não se pretende, necessariamente, o espetáculo ou a fruição da “peça de arte” em si. Do ponto de vista mais amplo e crítico da discussão, ou seja, construção e preservação da cidadania, em minha concepção de intervenção no processo cultural, tenho, na maior parte de minhas ações hoje, me pautado no processo e não no resultado do evento ou do produto.

O paradigma que me orienta enquanto "ativista produtor cultutral", implícita ou explicitamente, é a reconstrução da subjetividade negra – fragmentada no violento processo de transplante e encaixe nacional de nós: negros-africanos vivendo no Brasil.

Tenho dito que, “no afã de compreender e consertar o mundo, um jovem integrante do hip hop, por exemplo, é obrigado a se compreender e a se salvar primeiramente”.

A experiência do Hip Hop, vigorosamente presente e local, obriga o deslocamento do olhar do distante ou estranho para o próximo e ao lado. A “minha aldeia” passa a ser o centro do mundo e eu a razão da “minha vida”. Mas, ao mesmo tempo, esse mesmo jovem acessa o mundo inteiro da Lan House “da sua rua”, e tudo está ao seu alcance.

Nunca foi tão fácil ser “antropofágico”. Mas por opção, não por ignorância de si. Felizmente, os conceitos tradicionais de originalidade se diluem na era do youtube, do twiter e do sampler.

Permitam-me um poema pessoal, para retomar outro aspecto da dita cultura nacional e introduzir a minha terceira questão.

"havia lama na rua / de quando em quando / um corpo cadáver encalhado na vala / o espetáculo que a história oferece

restos e gestos do sim / alimentos recicláveis / bonecas sem pernas carros sem rodas / arqueólogo das sobras / as esmolas / o não

pretinho maltrapilho / com as manchas sujas da vida / sem saber nem por que / nas suturas das fraturas / cresci

eu na pilha / você na mira / não vê o que foi feito de mim

pena sangrenta / Gramática da Ira / meu rabisco mortal / vai foder tua lira"


(Gramática da Ira)

Na verdade, este meu poema quer falar do lado b das cidades, principalmente da minha cidade, a "terra da alegria" como diz o ditado estereotipado que nos determina tortuosamente. Mas meu lado b da cidade não está universalizado nem essencializado apenas pela miséria social. Meu lado b aparece também racializado. No caso específico de Salvador, tento desconstruir os mitos da alegria e da felicidade do “Sorria, você está na Bahia”.

Sabemos que, com as falácias da democracia racial e da ideologia do branqueamento, tentou-se apagar o conflito racial de nossa história.

Mas como diz aquele Chapolin Colorado: não contavam com nossa astúcia...

Não é?

Como bem demonstram Elza Soares, KL Jay e GOG: “somos duros na queda!”

Aqui chego à terceira “questão” deste texto: fica difícil para mim, negro ativista baiano, discutir cultura sem um certo sentimento de culpa, quando concidadãos conterrâneos meus, como a Vilma Reis, o Ricardo Andrade, o Liu Nzumbi e o Hamilton Borges Walê estão numa cruzada comovedora contra o extermínio da juventude negra da Bahia e do Brasil.

Que cultura esperar para nosso povo negro quando nossa principal luta ainda é para nos manter vivo? Ou melhor, não ser morto com a conivência do próprio estado que, quando não promove nosso extermínio, permite a matança do povo preto. Quando se luta cotidianamente contra a miséria, a fome, o analfabetismo, a discriminação e o racismo que parece aumentar a cada dia em nosso estado.

Aliás, aumentar não, tornar-se mais e mais visível. Isso acontece na medida que nos organizamos e mexemos em toda a merda dissimulada que convivemos desde sempre aqui neste nosso exílio chamado Brasil.

Mais do que propor estratégias e ações centradas e localizadas sobre a problemática das políticas culturais específicas e setorizadas ao povo negro brasileiro, minha proposição tem que ser central e transversal. Não se prender apenas aos ministérios, secretarias, setoriais ou qualquer outra pasta que tratam de uma “pseudo-cultura”, isolada e asséptica.

Nossa cultura tem que ser tratada como um caso de saúde pública, educação popular, economia solidária, saneamento básico e segurança coletiva. É preciso que o Estado brasileiro abandone essa vocação centenária de implantar e perpetuar, em seu próprio seio, a discriminação do povo preto e o extermínio da juventude negra.

Meu poema, antes de pleitear ser literatura, obra de arte para deleite e consumo - como querem as editoras comerciais - quer se alinhar à música do nigeriano Fela Kuti, buscando ser também minha arma contra a assimilação, contra a imposição de padrões etnocêntricos presentes no país desde seu longo e permanente processo de colonização.

A minha arte é, antes de tudo, um programa de lutas. Busco que sua verdade e vontade de beleza estejam diretamente ligadsa à sua necessidade bélica, ao seu engajamento social e à sua determinação da cor preta sem medo das retaliações das críticas especializadas da casa grande.

Fazer Belas Letras para mim representaria contaminar-me com os procedimentos artísticos hegemônicos e evasivos do colonizador estranho em detrimento de minha própria experiência acumulada, ainda que dolorosa, porém jamais cordial.

Seguir os delírios de equilíbrio e supremacia do "senhor" corresponderia a apagar magicamente as feridas históricas de meus antepassados que ainda tatuam dor no meu corpo. Reacendem minha revolta e não deixam que minha Ira seja dobrada pelas velhas pragas, agora ocultas nas miragens do Brasil atual.

É essa herança que procuro dramatizar nesse poema de "mau gosto". Ela é o amálgama de minha “Pena Sangrenta”; o sustentáculo de minha Gramática da Ira.

Minha quarta questão, que acredito ser o maior desafio de todo e qualquer intelectual, artista, produtor e ativista é: como fazer coabitar minha rebeldia e minha possível relação com o poder público, principalmente intermediada pelo dinheiro que, no fundo, é o único laço que nos pode aproximar?

No governo federal e em algumas administrações locais que se instalaram no Brasil da “abertura democrática”, temos assistido o alinhamento de militantes do movimento social negro com o poder central. A situação tem sido constrangedora para muitos, pois o que, na real, percebemos, é o engessamento de lideranças históricas e deslumbramento da juventude.

Como estar no poder e, ao mesmo tempo, contestá-lo é o problema que também o “movimento negro” enfrenta hoje.

E não têm sido confortáveis as experiências que conheço, pois as coalizões governamentais unem “lobos e cordeiros”, “escravos e feitores” em laços jamais imaginados em nosso idealismo essencial!

Tenho ventilado aos quatro cantos minha defesa de atitudes divergentes quando assim o contexto não apenas permite, mas exige.

Ao mesmo tempo, o Coletivo Blackitude: Vozes Negras da Bahia, que articulei e fundei há dez anos, e que atua efetivamente no cotidiano da cidade de Salvador, encontra-se exatamente nesta encruzilhada: arte, ativismo ou trabalho e renda? Instituir-se nos moldes tradicionais, ou não? Negociar e levar nossa experiência a muitos ou permanecer no espaço centrado das experiências radicais do underground? Também, culturalmente, habitamos o problema.

Na realidade, esses conflitos que a Blackitude vive refletem exatamente as contradições que representam nossas políticas culturais: uma negociação interessada sem lugar para a espontaneidade, a divergência e transgressão. Permanecem as eternas comissões oficiais que julgam o que vale, o que é e o que não é arte de interesse público; o que vale ou não o apoio oficial.

Os editais, de forma geral, me entediam, assim como as indicações dos governos e os tráficos de influência. Aliás, a Bahia é mestre nessas modalidades todas.

Sinto-me traído pelos editais que pedem para nós (artistas, ativistas e produtores orgânicos, que nos formamos no campo de batalha do cotidiano) que levantemos custos de sanitários químicos, ou então que preenchamos planilhas que são verdadeiras florestas de linhas, quadrados e números. Dizem, nos workshops oficiais, que bom projeto é sinônimo de projeto bem escrito; que um portifólio justificado fala mais alto que a própria arte; que reconhecimento público da atuação na vida na cultura da cidade não pesa nas decisões.

Como era antes não podia ficar, mas também não concordo com a simples inversão camuflada com o discurso enganoso da democratização, muito menos do paternalismo.

Outro dia, ouvindo o Irmão Edson Cardoso debater sobre “violência” em Salvador, no "Encontro Popular pela Vida e por uma Nova Segurança Pública", fortaleci minha convicção de que a necessidade de uma sistematização do discurso acerca do enfrentamento é tão óbvia que não percebemos.

Ele mostrou objetivamente que não se pode enfrentar a violência sem compreendê-la histórica e culturalmente; sem abordar sua origem, sua dinâmica, seus elementos de permissividade e complacência, sua lógica operacional, sua concretude (a face visível) e sua dissimulação...

Entendi assim o que dizia o Irmão: o simples enfrentamento entre a justiça e a infração, a polícia e o delinqüente, gera sempre um circulo vicioso de agressão e respectiva vingança contínua e vice-versa. Também a atitude pontual e destemida dos militantes mais diretamente envolvidos nessa frente pode resultar inócua se não se enfrenta as raízes e os alicerces do problema. Ou então podem se tornar, potencialmente, vítimas de vingança ou silenciamento.

Nesse sentido, de minha parte, concluo que não temos um pensamento efetivo e profundo sobre a questão da violência, principalmente aquelas toleradas e até mesmo respaldadas pelo imaginário social e endossadas pela opinião pública; praticadas pelas instituições e legitimadas por políticas arbitrárias.

Enfim, aceito, mais do que nunca, a lógica que, para enfrentarmos estruturalmente a violência, precisamos compreender os mecanismos que engendram e perpetuam nossa "cultura da violência", principalmente sobre as minorias fora do poder. Na verdade, precisamos aprender a desarmar estas minas, armadilhas enrustidas que nos mutilam cotidianamente!

Quero adaptar aqui essa reflexão importantíssima do Edson Cardoso, para chamar a atenção de todos, embora pareça dispensável a esta altura da história, para o fato de que precisamos sistematizar nosso discurso sobre os possíveis conceitos e materializações que podem dar conta do que é e como se articula a tal cultura nacional. Na verdade, culturas - no plural.

A partir daí, sim, questionar as práticas convencionais tradicionais, pensar em como estabelecer políticas que não entravem nem supervalorizem seus processos.

Nessa discussão me parece igualmente incontestável o fato de se pensar ser tão óbvia a cultura negra do país que se promove seu apagamento objetivo. Por isso não temos concebido políticas coletivas efetivas, a não ser quando confundidas com arte ou evento, ou então fruto de algum protecionismo qualquer.

Também aqui, o discurso da cultura deve converger com o da história, apontando-nos a urgência de se questionar sua origem, sua dinâmica e sua lógica operacional.

Para nós, negros intelectuais, artistas e ativistas, por exemplo, pensar e tratar a cultura no bojo de nossa realidade é mais que política, esteticismo ou academismo: é uma questão de sobrevivência, concreta e simbolicamente falando.

Preservação Física e Espiritual.

Axé!

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