terça-feira, 17 de maio de 2011

ENTREVISTA/ Cuti -

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ENTREVISTA EXCLUSIVA / CUTI

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Às vésperas de sua chegada em Salvador, para mais uma jornada literária e ativista, Cuti comenta essa viagem e outras demandas de sua trajetória, entrando em searas familiares para nós, os negros, e para toda e qualquer pessoa interessada na literatura “negro-brasileira” e/ou engajada na luta conta o racismo.

O escritor fala de sua variada obra, que circula pela poesia, narrativa e drama, além de sua produção ensaística. Ele declara sua afetividade pela Bahia e localiza o grupo Opanijé entre as experiências musicais do rap nacional que curte. Não deixa nunca de destacar sua admiração pela obra de Lima Barreto e Cruz e Souza. Também compara os saraus periféricos atuais com as históricas “rodas de poesia”.

Durante sua estada na cidade, Cuti participa do sarau Bem Black (25/05), ministra o minicurso “Literatura Negro-Brasileira” na XII Semana de Letras da UCSal (26 e 27/05), além de bater um papo com os alunos bolsistas dos Projetos Rasuras, PET Comunidades Periféricas e Conexão de Saberes (27/05), lá no Instituto de Letras da UFBA.

Em cada etapa dessa programação, autografará seu novo livro: Lima Barreto (Selo Negro; 128 páginas).

Aperte os cintos e bem-vindo a mais essa viagem de informação e formação a bordo do Gramática da Ira.
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Gramática da Ira (GI) - Cuti, você pode nos falar um pouco sobre sua relação com a Bahia, que importância o Estado tem na sua trajetória de homem negro, militante e escritor? Que expectativas você tem nesta sua nova jornada literária soteropolitana de 25 a 27 de maio?

CUTI - A maioria de nós negros brasileiros do sul e sudeste traz consciente ou inconsciente a história das viagens determinadas pelos ciclos econômicos, principalmente cana, minério e café. Os tambores chamam para o retorno. Em 1972 estive em Salvador. Saí de Santos com a mochila nas costas. Fui por desejo de conhecer a terra de tanta simbologia negra. Depois, com o tempo, vieram os laços, dos quais destaco Jônatas Conceição, Ana Célia e Ivete Sacramento, pessoas com as quais aprendi muito sobre Bahia e consciência negra. Daí a identidade foi ficando cada vez mais reforçada. Há comigo algo muito particular em relação ao mar de Salvador. Contemplá-lo faz se elevar em mim um tempo além do meu. Não sou místico, mas a sensação que tenho é que fico diante de uma memória partilhada, coletiva, que transcende o conhecimento livresco e mergulha meus sentidos no mistério denso que alimenta a minha literatura. Portanto, apenas continuo reforçando meus laços. Não costumo ter muitas expectativas quanto às minhas atividades literárias, tais como a que pretendo realizar nos dias acima citados. Isso é uma defesa contra as frustrações que, em um país tão avesso à leitura como o nosso, acabam se sucedendo. Vou para cumprir minha determinação de falar de literatura negro-brasileira, dizer poemas, dialogar e na perspectiva de encontrar os queridos amigos, em especial os escritores negros da cidade. Nosso cochicho intelectual é fundamental para o desenvolvimento de nossa literatura.




GI. Sua agenda em Salvador incluirá também um minicurso de “Literatura Negro-Brasileira” na XII Semana de Letras da UCSal e visita ao Sarau Bem Black, além de um bate-papo com estudantes cotistas e bolsistas de projetos acadêmicos específicos no Instituto de Letras da UFBA. Como você avalia essa agenda?

CUTI - A agenda é muito boa. Espero estar à altura dos questionamentos e da movimentação. Da academia para o sarau vai uma distância que não devia existir. A primeira faz um papel racionalizador em torno do texto enquanto o segundo potencializa o texto escrito com a alta voltagem emocional da oralidade. O bom é poder realizar vasos comunicantes entre as duas instâncias do saber.

GI. Quando você sentiu que era realmente um escritor? Em que momentos específicos a poesia, a prosa e a dramaturgia se tornam vitais para você? Quando aparece o teórico? Por quê?

CUTI - Desde pequeno eu percebi que brincar com o imaginário era também uma possibilidade de revelação do mundo. Minhas brincadeiras de infância tinham a imaginação como base e a criação de personagens como encantamento maior. Minha avó com suas histórias foi a grande inspiradora desta minha atividade. Ainda no nível básico, em aulas de redação, comecei a sentir essa benção que é poder escrever. Foi como aprender a andar com pernas de nuvens e adentrar o lado obscuro das coisas e das pessoas. Não há um momento específico. A sensação de prazer e realização com a escrita foi se fazendo silenciosa e gradativamente, ganhando cada vez novos sentidos e envolvimento pessoal, de mim para comigo mesmo, e de mim para com outras pessoas, pois literatura é, antes de mais nada, relação humana. Não me considero um teórico. Fui estudar Letras para complementar as deficiências de quem nasce em família pobre, sem hábito da leitura. Daí, fui tomando gosto pelo estudo literário, apesar de certas chatices que ele apresenta. Fiz mestrado e doutorado no mesmo sentido e, também, para poder elaborar algo sobre dois autores de minha profunda admiração: Cruz e Sousa e Lima Barreto. Sabe, nós – escritores negros – nos deparamos sempre com o processo desanimador do racismo. Ele tem por base desqualificar nossos textos com o fito de tirar nosso entusiasmo. Eu, também, precisava conhecer os paradigmas dos que diziam que questão racial não tinha a ver com literatura e porque diziam isso. É uma grande hipocrisia o supremacismo branco. A epiderme do texto fala seu abismo, um abismo que não querem que expressemos. Essa também é uma razão que me levou para a universidade. No mais, como todo mundo, a busca de uma profissão para sobreviver dignamente.



GI. Dia 12 de maio foi lançado seu novo livro, Lima Barreto, em São Paulo (e dia 25 em Salvador). Você pode nos falar um pouco da obra e da importância dela pertencer a um selo voltado para as questões da Negritude e, mais ainda, dentro de uma coleção voltada para “retratos do Brasil negro”?

CUTI - Tento recuperar o Lima desse estigma que preju
dica muito a fruição de sua tão valiosa obra, o estigma da inferioridade estilística e ideológica. É um autor que, por conta da pobreza, do alcoolismo e da loucura, acabou virando personagem de quantos racistas quiseram desqualificar a contundência de sua posição estético-ideológica. O branco, em geral, suporta muito mal a dimensão subjetiva do negro. Isso porque, nessa dimensão, ele – branco – está profundamente envolvido, seja por um processo de culpabilização que implica vergonha, seja pelo incômodo de não entender seu racismo crônico. Isaías Caminha, por exemplo, expõe seu ressentimento. É comum, ainda hoje, encontrarmos gente censurando o ressentimento. Afinal, o que querem essas pessoas? Ressentimento é um estágio fundamental da consciência indignada. Sem ele ninguém dá o passo para as ações transformadoras. Aqueles que vivem usando o riso falso como pára-raios vivem chocados e vão esticando a corda de si mesmos até se arrebentarem. Ninguém consegue enganar a si mesmo o tempo todo. O Lima Barreto nos ensina o enfrentamento. Isso é algo que tento trazer nesse estudo. A importância do selo e da coleção mostra que o Movimento Negro foi capaz de criar uma demanda no país. Estar o livro nesse nicho para mim tem o lado positivo e negativo. Os racistas sempre usaram o argumento de que o racismo não existe e de que falar nele é acendê-lo. Assim, qualquer produto que diga respeito à identidade negra eles tendem a acusar de particularismo e, assim, desqualificar. Infelizmente, há muito branco racista em postos de comando nos organismos culturais e eles vivem prejudicando nossas iniciativas com seus argumentos sujos de privilégios. Esse é um ponto. A positividade está no sentido de que a identidade de meu livro está definida de pronto. Quando a organizadora da coleção, Vera Lúcia Benedito, apresentou-me o desafio de escrever este livro em um tempo muito curto, hesitei por não gostar de escrever a toque de caixa. Mas, muito incentivado pela professora da Uneb, Maria Anória de Jesus Oliveira, resolvi enfrentar o desafio por ser uma oportunidade a mais de expor e firmar a minha filiação intelectual com outros autores negros.

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GI. Além de Lima Barreto, você pesquisa a obra de outro ícone negro e polêmico da Literatura Brasileira: Cruz e Souza. Ambos desfrutam “um pouco mais” de espaço nos estudos acadêmicos e seus desdobramentos pedagógicos. No entanto, os livros deles são praticamente desconhecidos da militância negra como um todo. Qual a importância da difusão e discussão desses autores entre os ativistas?

CUTI - A literatura entre os ativistas negros ainda é muito pouco consumida. Eles preferem mais a antropologia e a sociologia. Talvez por um equívoco de não levar em conta que a arte literária é uma forma de conhecimento que envolve não só o raciocínio, mas também os sentimentos e as emoções. Aliás, creio que o desinteresse pela leitura atinge também uma considerável parcela da militância negra. Essa é uma das principais razões que limitam as ações do Movimento Negro. Sem leitura, tudo fica mais difícil, inclusive a própria compreensão de si mesmo. Cruz e Sousa, a seu modo, nos põe em contato com a convulsão interior daqueles que se indignam em face das limitações do mundo e dos limites pessoais. Sua poética é reveladora de uma consciência em profusão verbal que os críticos brancos desvalorizaram, mas é de suma importância para nós, pois nos ensina o quanto a verbalização veloz tem a ver com a nossa retenção emocional e subjetiva. Lima Barreto é mestre do desmascaramento social e acena para a importância do despojamento da linguagem para atingir nosso povo, além da ousadia que se precisa ter para ir além dos limites de regramentos no campo da escrita.

GI. Consta em sua produção literária um disco em parceria com Carlos Assumpção. Qual a importância desse trabalho em sua carreira literária? Você tem outros trabalhos feitos ou projetos futuros nessa linha de registro oral?

CUTI - O Carlos de Assumpção é um grande declamador e é meu amigo do coração. A importância desse trabalho foi oralizar a escrita e perceber que esse é um processo viável e legítimo de comunicação. Além disso, foi a oportunidade de conviver com um ícone da poesia negro-brasileira e com ele aprender muita coisa. Projetos nessa linha tenho, sim, de realizar algo em parceria com pessoas como Vera Lopes, Cristiane Sobral, Raphão Alaafin, Akins Kinte e outros militantes da oralização poética negra. Mas são projetos ainda no limbo, em sua maioria, tendo em vista o corre em que as pessoas vivem com suas múltiplas atividades, inclusive eu.

GI. Que espaço a leitura e declamação de poesia ocupa em sua vida hoje? De forma geral, como você avalia essas práticas?

CUTI - Hoje tenho declamado muito pouco. Mais em eventos para os quais sou convidado. Acho a prática muito salutar. Ele recupera o sentido coletivo da poesia, o de partilhar de forma quente o potencial metafórico da comunicação, além de ser um fator de saúde para a memória.



GI. Você é um dos principais incentivadores de uma dramaturgia negra no Brasil. Inclusive faz parte de um pequeno e seleto grupo de escritores que se dedicam a esse gênero. Você pode falar um pouco de sua obra para teatro e também um pouco da dramaturgia negra no Brasil de forma geral? O que se mostra mais promissor à “dramaturgia negro-brasileiro”: a televisão, o teatro ou o cinema?

CUTI - Eu estou em falta com o teatro. Pretendo escrever muito mais nessa área, mesmo sabendo da importância que a crítica literária dá para o romance e das dificuldades do gênero dramático para alcançar o palco. Eu tenho comigo que nós precisamos de peças de demarcam a personagem como indivíduo singular e não como tipo ou fragmento do grupo de negros. Com a singularidade podemos apresentar melhor a nossa humanidade, mostrar que somos diferentes uns dos outros, que temos sentimentos profundos, contradições, anseios e somos capazes de superação. É trabalhando com a singularidade que podemos vencer com mais ênfase o racismo brasileiro, pois, com ela, paradoxalmente, o coletivo aparece mais forte. Meus textos tem tido um tanto desse apelo, mas não descuido de algo que considero importante: a militância negra enquanto matéria ficcional. É falso hoje em dia imaginar que uma personagem com consciência negra é inverossímil. Com o advento da dramaturgia do diretor, o autor dramático foi sendo descartado. Os grupos preferem montar suas próprias criações coletivas. Ocorre que, salvo exceções, isso resulta em falta de amarração. As apresentações seguem o padrão das colagens. Você sai do teatro sem se impactar, sem levar questões para casa. Às vezes o espetáculo é bem montado, mas fica ali, não incomoda, por mais palavras militantes que são lançadas ao vento dos diálogos e das performances. Esse vazio ocorre porque falta o drama aprofundado do indivíduo, falta a história que nos faça nos preocupar com alguém ou com o nosso próprio destino pessoal. Sinto falta de densidade humana nos espetáculos. O teatro, apesar de ainda ser caro para produzir, é mais barato do que a TV e o cinema. Por essa razão talvez seja mais viável para uma população pobre, embora eu considere que todos os veículos sejam viáveis, especialmente o cinema alternativo.

GI. Você percebe realmente a existência de uma estética que possibilite admitir o conceito “Literatura negro-brasileira”? Quais são os paradigmas que sustentam essa produção?

CUTI – Sobretudo a identidade subjetiva. Do soneto ao poema experimental essa identidade se configura no vocabulário e no posicionamento desde dentro – como diria o sociólogo negro Guerreiro Ramos – do sujeito enunciador, além dos temas ligados à matriz africana e a intertextualidade crítica em relação ao cânone literário brasileiro.



GI. Você pode contextualizar a “Quilombhoje” e os “Cadernos Negros”? Revendo essas três décadas de história, que transformações mais efetivas você percebe na poesia e no conto brasileiro?

CUTI - É uma longa história, possível de aqui apenas eu dar umas pinceladas. Os autores têm feito de suas trajetórias individuais um refinamento da dimensão coletiva. Há muita gente escrevendo apenas para “ser escritor”, ou seja, com aquelas veleidades de se tornar importante. A essas pessoas uma noite de autógrafos satisfaz, ou um elogio qualquer de algum parente ou de prefaciador de seu livro ou crítico. Contudo, tem uma turma que se percebe histórica e esteticamente no contexto do Brasil. A atividade do Quilombhoje e dos Cadernos Negros possibilita o acolhimento a esses escritores conscientes da arte e do ônus da escrita literária. Esse acolhimento inicial é muito importante, pois nos tira daquele isolamento intelectual que é uma das versões cruéis do racismo brasileiro. Muita coisa mudou, mas algo importante permanece, o sentimento de pertencer a um coletivo. Da época em que surgiram os Cadernos Negros (1978) e o Quilombhoje (1980) para cá muita coisa mudou. Surgiram iniciativas importantes no contexto das periferias das grandes cidades. Em São Paulo, as Edições Toró têm feito um trabalho que está dando bons frutos na cena editorial brasileira, publicando autores cuja experiência de vida vem sendo plasmada em uma dicção muito criativa, vazando posturas críticas sobre a nação. A desidealização da figura do escritor é o maior contributo dessas iniciativas. Não é preciso ser branco, de classe média, universitário para se escrever poemas, contos, romances, peças teatrais. E também não é preciso ser abençoado pelas musas. Agora, uma coisa que está faltando é o incremento da leitura, o que é fundamental para qualquer escritor. Escritores como Akins Kinte, Elizandra, Sacolinha e tantos outros têm produzido textos interessantes. O cenário brasileiro é muito amplo e a dificuldade de acesso às obras tem sido um grande obstáculo para o desenvolvimento literário, pois aqui se publica muito, porém as edições são muito pequenas, a maior parte delas indo de 300 a 1000 exemplares. Além disso, o pior: a desleitura. A criança vai à escola, aprende a ler mal, sai e não lê mais, não se torna leitora. Quanto à poesia brasileira de maior veiculação nos meios tradicionais das livrarias, ela parece ter perdido o interesse para com os destinos do país e caído em certo niilismo urbanóide. Nesse sentido, a vertente negro-periférica tem dado uma resposta diferenciada e consequente.



GI. Você tem acompanhado o movimento dos chamados “saraus periféricos” em São Paulo? É possível estabelecer relações entre eles e as denominadas “rodas de poemas” das quais você é um dos protagonistas? Como você percebe a presença da negritude nesses espaços?

CUTI - Tenho acompanhado muito pouco esses saraus, embora já tenha freqüentado alguns deles. Contudo, creio que há um conflito que se enuncia. É um conflito de identidade. Quando digo conflito não estou me referindo a uma necessária oposição. Creio que a idéia de periferia tem servido para alguns negro-mestiços de mote pra camuflar seu conflito racial. Periferia é um termo de localização espacial e econômica. Conversando com uma poeta negra periférica, ela me dizia que, apesar de sua identidade espácio-econômica, ela não via a hora de poder se mudar para um local de melhor qualidade de vida, pois não aguentava mais a violência e as condições precárias de seu bairro. Os saraus, no meu entender, estão inserindo a literatura para revelar como se configuram tais conflitos, além da busca da identidade negra que é histórica. A oposição entre classe e raça que a esquerda racista brasileira sempre tentou apresentar ainda hoje continua sendo manipulada, agora com a noção de periferia. Como eu dizia, o conflito está na superação dessa oposição ideológica que, no meu modo de entender, é falsa. Entretanto, assumir-se como negro não implica, necessariamente, assumir-se como periférico geográfico, mas sim como periférico em face do poder historicamente branco. O critério geográfico é precário. As pessoas mudam de bairro, de cidade, de status social. Mas ele é profundamente humano, pois o espaço onde se mora condiciona muito o nosso comportamento e nossas fantasias. Creio que a identidade negra funcionaria aí como uma dimensão mais abrangente por conter perspectiva histórica. Afinal, a luta quilombola, por exemplo, se configurou também por uma luta territorial. A identidade negra, entretanto, por não se limitar ao território, reconfigura a periferia nas instâncias do poder político, cultural, estético etc. Os saraus têm sido, a meu ver, o caldeirão em que se cozinham todas essas questões. Do ponto de vista da forma, há diferenças em relação às rodas de poemas. Estas não têm a perspectiva de apresentação, mas de fruição lúdica e interação coletiva. Canta-se, toca-se, dança-se e declama-se num continuo, sem a personalização dos declamadores; não há a estrutura que divide os artistas e o público expectador; todos, no momento da roda, estão em uma comunhão, que não distingue quem é e quem não é poeta. Os saraus, geralmente realizado em bares, se configuram como espetáculos para um público que vai lá para beber cerveja e ouvir poemas. Na roda, em geral, quem está lá foi para ouvir poemas ou para um evento cultural (lançamento de livro, palestra, congresso etc) ou apenas para a própria roda. O público, portanto, acaba sendo um pouco diferente. A estrutura formal do sarau, com apresentação dos artistas, espaço cênico, microfone de pedestal etc, difere do espaço da roda que é um espaço circular feito de pessoas. As duas formas são válidas; veiculam literatura, sentimentos e idéias. O sarau parece ser mais autoritário, entretanto, que a roda de poemas, pelo seu formato. A roda de poemas, entretanto, por não ter uma preparação prévia muitas vezes cai no apenas lúdico. Agora, a roda é mais negra do ponto de vista da herança cultural africana, reflete melhor o jeito negro de ser. Ela vem da tradição dos xirês, dos sambas de roda e das rodas de samba. Roda, roda, roda poesia ô lelê!...

GI. E a música, que importância e sentido ela traz para a construção de sua pessoa e, logicamente, para seu trabalho ficcional? Qual é a trilha sonora essencial de sua vida?

CUTI – Não me dedico à música no sentido da criação. Contudo, creio que ela é essencial para a minha formação intelectual e para o desenvolvimento de minha sensibilidade para a poesia, mais do que para a ficção. Para mim, poema passa pela musicalidade, como passa pela metaforização das palavras. É preciso ser significativo aos ouvidos e à nossa imaginação. A trilha sonora essencial de minha vida são as batidas de meu coração e as do coração da mulher amada.

GI. Você tem acompanhado o Rap brasileiro? Caso afirmativo, o que você destacaria naquilo que você conhece?

CUTI – Posso dizer que sou semialfabetizado em rap. Ainda assim, gosto muito de Raphão Alaafin, Racionais, Negra Li e do Opanijé. E gostaria de salientar, pelo mais que ouvi, que é a vertente musical brasileira mais criativa no momento, pela riqueza de experimentação rítmica e pelo conteúdo político, superando essa mesmice de “meu amor me deixou”, “não sei viver sem você”, “quero fazer amor”, “boquinha da garrafa” e outras idiotices românticas e pornochanchadas que só imbecilizam nosso povo. É uma pena que as rádios, em sua maioria, mantêm o rap consequente amordaçado no silêncio para o grande público.


.Justificar
GI. Como você descreveria o Cuti ativista do movimento social negro hoje? Que transformações - de concepção e de práticas - mais acentuadas você destacaria na sua trajetória de militante? Que perspectivas de futuro Cuti vislumbra ao “dilema” do negro brasileiro?

CUTI – Não gosto de falar de mim. Tem pavor do cabotinismo tão usual hoje em dia, com essa mania generalizada de marketing pessoal, de “eu me ufano de mim”.. Em geral, as pessoas quando falam de si, mentem. E eu já tenho muitas contas a ajustar comigo mesmo para me arriscar a contrair outras. Quanto às perspectivas para o que você chamou de dilema do negro brasileiro, creio que nós deveríamos falar em dilema racial brasileiro. Acho mais apropriado, pois a questão racial não é do negro, mas do branco e do mestiço também, inclusive daqueles descendentes de orientais. Falou que é brasileiro, está envolvido. Quanto a isso, acho que as ações afirmativas já estão dando resultado promissor de maior integração de nosso povo. A luta no campo ideológico tem também trazido avanços como, por exemplo, no sentido de desmistificar grandes nomes no plano cultural, como o racista Monteiro Lobato. Com o debate, muitos racistas estão saindo do armário. Melhor. Assim, vamos conhecendo quem é quem na questão racial. Nada de apenas “beleza pura”. Queremos grana também, universidade, profissões melhores, poder. Há um movimento acadêmico quem tem insistido no culturalismo da questão racial, tentando promover aquela idéia de cultura asséptica, sem conflito, sem reivindicação. É um propósito de esvaziar as conquistas do Movimento Negro nacional. Isso sempre existiu por parte dos brancos, mestiços e negros alienados. Já na primeira metade do século XX, quando os negros militantes faziam congressos negros essa outra turma fazia congresso afro-brasileiro. Enquanto uns discutiam como reivindicar melhor vida para seu povo, os outros discutiam a influência da culinária africana no Brasil. Não tenho dúvida: no futuro, nós negros alisaremos e rasparemos menos nossos cabelos e teremos criado uma nova estética para o Brasil, não apenas capilar, mas também artística, além de uma política mais justa para todos, a partir da nossa experiência histórica coletiva.




(Entrevista para Nelson Maca – 16/5/2011)


Foto1. Cuti
Foto2. Akins Kintê
Foto3. Raphão Alaaphin


Informações sobre Cuti e sua obra: www.cuti.com.br
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Um comentário:

Opanijé disse...

Fico muito honrado em ter nosso trabalho reconhecido por alguém como Cuti. Axé e Obrigado