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Eclipse Simonal*
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"Wilson Simonal: Sol Negro na música brasileira"
Também os astros de carne e osso não estão imunes a eclipses. Total ou parcial, depois de brilho intenso, muita gente de luz própria é encoberta de sombra. Na música brasileira, um dos casos mais intrigantes deste eclipse cultural é Wilson Simonal de Castro. Depois de escalar - com talento, sedução e simpatia - o mais alto pico possível a um cantor e compositor popular em sua época, um manto opaco e duradouro foi depositado sobre ele. Após ser absoluto nos anos sessenta e início dos setenta, viveu 28 anos de martírio em vida - ostracismo, miséria, depressão, alcoolismo, doença e morte dramática - e mais 10 desde sua morte. Hoje, enfim, começa a se dissipar a nefasta poeira que o envolveu por quase 40 anos. Sua genialidade se recompõe não somente aos olhos de seus contemporâneos, mas também diante de pessoas que, finalmente, tomam conta da grandiosidade que foi sua carreira e obra seqüestradas.
Essa retomada de Wilson Simonal foi potencializada pelo documentário “Wilson Simonal: ninguém sabe o duro que eu dei” de Claudio Manuel, Calvito Leal e Micael Langer. Lançado em 2009, a narrativa abre uma grande janela, libertando um pouco da luz aprisionada daquele que, mesmo no vale das sombras, nunca deixou de ser um Sol Negro na música brasileira. No entanto, se dá uma dimensão exata do que foi sua trajetória produtiva, por outro lado, reacende as brasas adormecidas de um conflito para o qual o Brasil ainda deve uma resposta convincente. O filme não evita a polêmica sobre a acusação de “dedo-duro” que recai sobre ele desde o início da década de setenta, período de endurecimento do regime militar.
A tese mais corrente no grande debate reaquecido é que a morte em vida de Wilson Simonal é resultado do boicote ao artista por causa dessa implacável acusação, encabeçada à época, na imprensa, por polemistas como Jaguar e o Jornal Pasquim, e também pela classe artística, com adesão de nomes notórios como Chico Buarque de Holanda. Hoje a condenação permanece categórica nas palavras de pessoas como Paulo Vanzoline. É sabido que o X-9, na ética do crime, é condenado à morte sumária e inapelavelmente. Não tem volta. Enterrado vivo, na morte cultural decretada a Wilson Simonal, no entanto, se não há remissão para seu corpo, há possibilidades de ressurreição de sua música. Como aquele Sol que, lenta e visivelmente, vai despontando da sombra do eclipse. Do filme, da internet, dos livros e outros suportes, Simonal vem despontando preto e talentoso como nunca deixou de ser.
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A rediscussão do “apagamento” de Simonal, mais do que o irreversível aniquilamento de seu corpo físico, é a intenção primeira desse artigo, no intuito de retomar o problema a partir de um ângulo, sem dúvida, lembrado, porém pouco explorado. Não debato a verdade suprema do caso, pois a dialética buscada, aqui, é a do conflito.
Wilson Simonal foi o músico negro de maior consagração midiática no Brasil até então. Além da irreparável carreira de intérprete, chegando a gravar duetos com Sarah Vaughan, teve seu próprio programa televisivo e foi garoto propaganda da Shell. Seduziu, sensualmente, celebridades do porte de Giulietta Masina e acompanhou a mais consagrada seleção de futebol que o país já teve à copa do México de 1970. Ele esteve para a música assim como Pelé está ainda para o futebol. Mas parece que não se comportou tão bem como o “Rei” da bola. Não teria se colocado em seu devido lugar? Era arrogante a ponto de se declarar amigo do regime militar, para se safar de uma pendenga judicial, como dizem os resenhistas da polêmica política em que se meteu.
Definitivamente não era um neguinho acossado, era altivo e orgulhoso de si. No livro “Alma no exílio”, Eldridge Clever diz que o que a América branca esperava dos lutadores negros era uma pantera no ringue e um gatinho fora dele. Até que chegou Muhammad Ali. Tentaram anular o lutador, apagando sua figura dos ringues. Mas ele voltou maior que antes! Então pergunto: será que Simonal também está superando seu eclipse total, para reaparecer ainda maior?
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Simonal me faz lembrar outros eclipses históricos da negritude brasileira que recuperaram sua integridade pelas mãos do movimento social negro. Alguns homens essenciais somem no pico da luta, restando à história oficial, por exclusão, os heróis que lhes interessa. Para pensar o fenômeno da invisibilidade da negritude divergente, podemos destacar, do lado detrás do eclipse, além próprio Simonal, Zumbi e Luís Gama. Ambos representam hoje modelos comportamentais positivos de uma negritude rebelada. Ambos foram apagados pela luz da história hegemônica. Luz que, muito rapidamente, iluminou pessoas como Gregório de Matos, Castro Alves e João Gilberto. A partir da eleição desses casos ilustres, procuro descentrar a luminosidade, focando também o astro Wilson Simonal.
Para ser completa a analogia do eclipse como método de análise, quero lembrar que esse fenômeno da natureza - aqui simbolizado como prática sócio-política - tem dois elementos básicos: o corpo encoberto e o corpo que o encobre. Num sentido simbólico e comparativo, a cultura assinalada lança sua sombra sobre a proscrita, apagando-a. Ambas determinadas pelos jogos não somente da classe, mas também e simultaneamente da cultura, do gênero e da raça. Vejo nesta multiplicidade de fatores o portal de entrada ao fenômeno complexo que envolve nosso pop-star negro. Não dá para reduzi-lo à suposta força hercúlea da patrulha ideológica ou ao declínio da arte. Do ponto de vista racial, Wilson Simonal não é um caso particular de “apagamento”. Ele faz parte de uma tradição nacional que neutraliza, sistematicamente, os corpos, ações, comportamentos e linguagens “estranhos” que relativizam a superioridade dos corpos, ações, comportamentos e linguagens historicamente hegemônicos.
Gregório de Mattos e Guerra foi contemporâneo do Capitão Zumbi dos Palmares. Luís Gama viveu por dentro a escravidão versada em terceira pessoa por Castro Alves. Wilson Simonal cresce num momento em que a bossa nova de João Gilberto já era um caso mais para lá do que para cá da nacionalidade e das preferências estéticas locais. No entanto, enquanto Zumbi ainda é tratado como um mito ou fantasma - fora do ativismo social negro - Gregório de Mattos é estudado, preservado e imitado como se fosse o supra-sumo da brasilidade nascente e permanente. Enquanto Castro Alves, o poeta dos escravos, permanece com o mesmo vigor que lhe confirmou seu ilustre conterrâneo Rui Barbosa, ainda está muito longe da popularidade e da legenda de herói sócio-literário o também baiano do século XIX Luís Gama, poeta escravo em primeira pessoa e abolicionista por dentro.
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Enquanto Wilson Simonal, e principalmente sua música, permanece banido da cultura tupiniquim, acusado de colaborador da ditadura militar ou então de artista decadente já à época de seu declínio popular, Paulo Maluf continua vagando pelas ruas na condição de homem rico e livre, e político atuante; e João Gilberto só cresce, mesmo cantando uma estética congelada há cinqüenta anos, e que nunca atingiu a platéia da geral do maracanã da cultura musical brasileira.
A história sempre foi e será um ponto de vista localizado. Assim sendo, não é neutra material e, muito menos, abstratamente. A realidade é discurso, aprende-se cedo no curso de filosofia da linguagem. A biografia é linguagem, por isso trai seu referente, a vida – para cima e para baixo. Dizem as anedotas que Marx jamais seria marxista; e Cristo evitaria os cristãos. Dizem que, na famosa carta de achamento do Brasil, Caminha escreveu: “em se plantando, tudo dá”. Não está plantado isso lá na missiva do célebre escriba, mas até hoje frutifica no imaginário coletivo. Finalmente, dizem que o nome negro não é um enunciado original do homem preto, mas de seu “outro” em contexto de contato, do branco - conceituação de fora para dentro. Juízo de estranho e axioma político e cultural.
Wilson Simonal teve sua produção, momentaneamente, apagada. Interessa-me indagar o porquê de sua genialidade musical, apesar de sua materialidade e solidez estética registradas em suportes preservados, desmancharem-se no ar. Onde foi parar esse patrimônio coletivo que dominava as referências imediatas da musicalidade brasileira? Mas, para o desespero geral do coro dos contentes, ela está voltando nos filhos, clipes, filmes, livros, internet, remasterizações. Voltando até mesmo nos “mui-amigos” e “simpatizantes” ilustres que, esfriado o fogo amigo da esquerda brasileira pensante, resolveram falar. Onde estavam esses homens midiaticamente famosos e materialmente afortunados que têm dado tão belos depoimentos a favor de Simonal no momento em que o negão estava isolado, depressivo, sem trabalho, na miséria ou definhando assustadoramente ao encontro da morte? Até Hitler e Pinochet foram confortados pelos seus pares na queda. Seria somente o peso da acusação de dedo-duro ou a decadência estética da música suficiente para aquela debandada do contingente da indústria cultural, da comunidade artística e dos amigos em geral? Duvido!
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Acompanhando o grande debate em torno do filme, percebo três proposições de análise: a) trata-se da execução sumária de sua carreira, provocada pelo boicote da esquerda brasileira; b) trata-se de um processo de decadência artística que pode vitimar qualquer artista que não se renove; c) trata-se de racismo.
A primeira hipótese é mais longa e corrente. Em torno dela reacendeu-se a grande discussão ideológica entre direita e esquerda oriunda dos anos da ditadura. Vem daí, por exemplo, a acusação que sofre o documentário de “revisionismo” de direita. Também desta leitura, acusa-se os simpatizantes de construírem uma “vitimização” de Wilson Simonal. A segunda hipótese postula que o artista estaria defasado perante as principais correntes musicais inovadoras da época. A saber: tropicália, jovem guarda e a presença dos mineiros, tudo isso somado à resistência do samba carioca. No plano internacional, são paradigmas da antítese o rock inglês e a soul funk dos negros americanos. A última hipótese, apesar de sempre lembrada, é a menos discutida. Quando colocada, com raríssimas exceções, carece de sistematização e desdobramentos, caindo também na armadilha do panfletarismo.
Exatamente nesse conflito racial instala-se meu maior interesse. Não desdigo outras proposições, mas quero ampliar o questionamento sobre as implicações da negritude de Simonal em seu desaparecimento. Na verdade, chamo a atenção para a necessidade de debatermos o racismo brasileiro para além de casos particulares e pontuais. È doloroso presenciar a discussão da vida polêmica e a obra fenomenal de um homem negro tão próximo de nossa própria existência reduzida a uma questão ideológica entre direita e esquerda quando sabemos que nenhuma acolhe com respeito e equilíbrio as demandas de “nós”, os negros. Ou como uma questão anacrônica de uma moda fadada à efemeridade.
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Na ocasião da morte prematura de Bob Marley, numa singela canção, o reggae-man africano Alpha Blondy pergunta: “Por que os heróis negros devem morrer tão cedo?” Eu, de minha parte, penso que devemos questionar, com mais profundidade e insistência, por que e como determinadas personalidades negras sofrem – sistematicamente - eclipse total. Não essencializando os casos particulares, mas buscando vislumbrar o mecanismo comum que parece os envolver. Não trato apenas de uma revisão do passado, mas principalmente da percepção e atuação no presente e orientação crítica do futuro.
Wilson Simonal não é um caso isolado. É também produto do paradigmático conflito racial brasileiro. Meus olhos, independentes, não perdem de vista a luz que vem do swing incondicional da música de Wilson Simonal. Por isso, quero comungar ainda uma quarta tese reiterada em muitos dos textos que li nessa recente polêmica: tá na hora de deixarmos um pouco as discussões paralelas e trazer de volta ao primeiro plano a música de Wilson Simonal, pois "com a canção também se luta, Irmão"."
Todo eclipse total, na verdade, é sempre parcial. Wilson sempre foi musical. Seu eclipse nunca deixou de ser Simonal.
:: Nelson Maca - Blackitude: Vozes Negras da Bahia
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*Fui convidado a escrever um artigo sobre Wilson Simonal para o Jornal "A Tarde" (Salvador). O gancho era a data de 10 anos de sua morte, completados na semana passada, dia 25 de junho. Aceitei de imediato, pois tenho acompanhado, em silêncio, a grande polêmica provocada pelo filme que documenta sua carreira. Então, uma versão "resumida" do que trago aqui foi publicada no "Caderno 2" daquele periódico na quarta feira, dia 23 de março. (com o mesmo título daqui: Eclipse Simonal). Só que não consegui parar de escrever até agora, por ser um assunto e uma questão vital para mim. Continuo pesquisando, pensando, enfim desdobrando minha argumentação no sentido da abordagem do asunto pela ótica racial.
- Logo volto com mais Wilson Simonal, tá?
Aproveito para dedicar essa versão do texto aos meus irmãos, irmãs, filhos e filhas Ana Cristina Pereira, Dj Joe, Iara Nascimento, Lázaro Erê, Lucinha Black Power, Luiza Gata, Negra Íris, Preta May, Robson Véio, Rone Dundum e Sandro Sussuarana. E a turma toda dessas quartas feiras que tem enchido meu coração de alegria.
Porque nossa Poesia é Preta e o nosso Sarau Bem Black.
Nelson Maca -
Exu Encruzilhador das Palavras
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2 comentários:
Texto da "zorra"! Muito bom! Estou sem saber como dizer que é texto muito mais científico do que os científicos de plantão. Cará! Sílvio.
Pô, Silvio, valeu, man!
você sabe o quanto é importante eu receber esse comentário seu, não sabe?
Juntos Ainde e Sempre!
Nelson Maca
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